segunda-feira, julho 17, 2006

Revolução pela calada

Publicado no Diário Económico a 28/6/2006

Muitos artigos e mais disparates foram escritos recentemente sobre o impacto do mundial de futebol na economia portuguesa. Alguns falam de psicologia de massas, como se cada golo marcado da noite para o dia tornasse os portugueses mais trabalhadores, empreendedores e produtivos. Estes milagres são na melhor das hipóteses duvidosos, mas há um factor psicológico que pode levar a que o mundial de futebol tenha efeitos duradouros na economia: a distracção.

Nas últimas semanas, aproveitando-se da distracção gerada pelo futebol, o governo empreendou uma revolução em surdina. A reforma na segurança social foi profunda, de enorme impacto, e bem sucedida. O problema da segurança social é grave e ataca o sistema na sua raíz: a transferência de dinheiro dos trabalhadores para os reformados. Com o envelhecimento da população, há cada vez mais pensionistas e menos contribuintes para o sistema, pelo que no presente as receitas mal cobrem as despesas e em menos de duas décadas o sistema viria a falir.

A única forma de resolver a questão é aumentar as receitas e diminuir as despesas. Porque o sistema se limita a transferir dinheiro de uns para outros, qualquer mudança necessariamente vai prejudicar alguns. A única opção é escolher quem prejudicar e quanto. Politicamente, esta escolha é tão difícil que quase nenhum país teve até agora a coragem de enfrentar o problema. Por exemplo, embora George W. Bush tenha feito da reforma da segurança social americana o seu grande objectivo para o segundo mandato, ela está hoje quase irremediavelmente comprometida ao fracasso. Não se fazendo nada, quem perde mais são todos os que hoje têm menos de 50 anos. Estes irão contribuir toda a sua vida para depois não receber nada em troca quando chegarem à idade de reforma.

Em Portugal, a política do governo assenta em três medidas cruciais. Em primeiro lugar, aumenta gradualmente a idade da reforma. Assim, aumentam os que pagam e diminuem os que recebem. Quem perde com esta mudança é quem tem mais de 55 anos e planeava reformar-se em breve. Vão agora ter de trabalhar mais alguns anos. Para o futuro, fica indexada a idade da reforma à esperanca de vida, pelo que o sistema fica mais robusto a futuras mudanças demográficas.

Em segundo lugar, diminuem as pensões. Estas passam a ser calculadas em função dos rendimentos durante toda a vida de trabalho, em vez de apenas os últimos anos. Porque, para quase todos, os rendimentos aumentam com a idade, o valor da pensão diminuirá. Quem mais perde com esta reforma é quem trabalha em profissões nas quais o rendimento sobe mais acentuadamente com a progressão na carreira—por exemplo, os advogados ou os arquitectos que começam ganhando pouco dinheiro em sucessivos estágios e posições subalternas mas vão adquirindo prestígio e experiência com a idade e com isso rendimentos cada vez mais elevados.

Em terceiro lugar, as pensões passam a estar indexadas ao valor da inflação no ano anterior. Apesar de subtil, esta medida pode ter um enorme impacto em euros (como descrevi nesta coluna em Janeiro passado). Imagine que a inflação é zero, mas a riqueza real no país cresce aproximadamente a 2% por ano, como tem sido a média nos últimos 100 anos. Imagine também que tem 65 anos e se reforma com uma pensão igual ao rendimento do seu neto que tem 20 anos. Enquanto os rendimentos do seu neto vão crescer aproximadamente a 2% por ano, a sua pensão vai ficar na mesma. Quando o leitor tiver 85 anos, o rendimento do seu neto será 49% maior que o seu. Se viver até aos 100 anos, o seu neto ganhará o dobro da sua pensão. Fica a perder quem vive mais anos. Estes verão a pensão diminuir muito em relação ao rendimento médio dos trabalhadores.

O conjunto das três medidas praticamente assegura a viabilidade do sistema de segurança social durante os próximos 50 anos, distribuindo os custos um pouco por todos. No domingo, muitos portugueses vibraram com o espírito de sacrifício dos jogadores da selecção de futebol na defesa da baliza portuguesa. Distraídos, os portugueses não se aperceberam de que o governo acabou de lhes pedir que se sacrifiquem um pouco na defesa do sistema de segurança social. Esta reforma coloca Portugal no papel invejável de ser quase o único país que resolveu uma enorme dor de cabeça.

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