segunda-feira, outubro 16, 2006

Desigualdade e redistribuição

Publicado no Diário Económico a 5/9/2006.

A desigualdade nos rendimentos antes de impostos no pós-guerra é bastante maior nos EUA do que na Europa ocidental. Nos últimos 20 anos, esta diferença acentuou-se com um aumento na desigualdade nos EUA.

As teorias convencionais prevêem que mais desigualdade deveria aumentar a procura por instrumentos de redistribuição. Numa sociedade mais desigual, maior seria o desejo de corrigir esta desigualdade mesmo que à custa de alguma riqueza ou produtividade.

Na realidade, no entanto, os impostos nos EUA são menos progressivos do que na Europa e o tamanho do Estado-providência ou das transferências sociais é muito menor nos EUA. Para além disso, nos últimos 20 anos, a política americana foi dominada por governos republicanos (com a excepção de Bill Clinton) que reduziram em muito a redistribuição de recursos. Os eleitores americanos não só têm menos redistribuição, como parecem querer ainda menos.

As previsões convencionais falham ainda mais rotundamente quando se considera que nos EUA só existem dois partidos. Neste sistema, o partido que conseguir apelar ao eleitor que está exactamente ao centro vai alcançar pelo menos 50% dos votos e ganhar a eleição. Como tal, é de esperar que as políticas sejam feitas à medida deste eleitor mediano. Ora, a desigualdade dos rendimentos implica que o eleitor mediano ganha bastante menos do que os mais ricos e menos do que a média. Como tal, deveria apoiar políticas redistributivas. Novamente, maior desigualdade deveria levar a mais, não menos, redistribuição. A busca pela explicação tem de continuar.

Existe uma alternativa com alguma história, mas que até hoje tem recebido pouco peso. Os economistas Roland Bénabou e Efe Ok chamam-lhe a POUM para ‘prospect of upward mobility’ ou, em português, a possibilidade de mobilidade social ascendente. Ela assenta em duas premissas. Em primeiro lugar, tem de existir alguma inércia nas políticas e nas instituições para que as escolhas quanto à redistribuição persistam alguns anos. Em segundo lugar, é preciso que embora o eleitor ao centro seja mais pobre do que a média hoje, ele espere ser mais rico do que a média no futuro. Se estas duas premissas se verificarem, então hoje os eleitores desejam e votam a favor de menos redistribuição. Que os pobres hoje votem contra a redistribuição, e logo contra a sua própria situação social, pode parecer bizarro. Mas, se eles esperam ser ricos amanhã, então eles votam assim para não criar as instituições que permitam que o Estado tire recursos aos ricos para dar aos pobres, quer no presente quer no futuro.

O problema com esta explicação é que a segunda premissa não parece ser mais verdadeira nos EUA do que na Europa. Como o ”Economist” recentemente discutiu, e o ”Diário de Notícias” resumiu, a mobilidade económica e social nos EUA tem decrescido bastante nos últimos 20 anos. Hoje, ela é mais baixa do que na Europa ou, na melhor das hipóteses, igual. Na realidade, a possibilidade de ascensão social nos EUA é hoje em dia muito baixa.

No entanto, de acordo com a POUM, o que importa é a expectativa de que é possível ficar mais rico. Em 2001, 71% dos americanos afirmaram acreditar que os pobres podem enriquecer desde que trabalhem para isso; apenas 40% dos europeus concorda. No reverso da medalha, cerca de 60% dos portugueses acreditam que a sorte e as ligações sociais, mas não o mérito, determinam a riqueza individual, contra apenas cerca de 35% dos americanos. Os americanos acreditam que todos podem ser ricos e que quem o é merece-o; por isso, acham que retirar dos ricos para dar aos pobres é tirar aos que têm mérito para dar aos que não têm. Os europeus acreditam que tirar aos ricos é tirar aos que foram sortudos, nasceram na família certa, ou melhor souberam corromper o sistema.

A discordância entre as crenças dos americanos e a realidade acerca da ascensão social no seu país revela alguma ilusão da sua parte. Por outro lado, enquanto os realistas (e desiludidos) europeus votam em políticas redistributivas que criam as condições para que seja de facto a sorte a determinar a riqueza individual, os americanos escolhem políticas que recompensam o mérito em que acreditam. Talvez seja esta ilusão com efeitos reais o verdadeiro ”sonho americano”.

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