terça-feira, junho 26, 2007

As reformas da Chrysler

Publicado no Diário Económico a 12/06/2007.

No mês passado, o construtor automóvel Daimler, que fabrica a emblemática marca Mercedes, vendeu a também mítica Chrysler ao grupo de investidores Cerberus. Uma das várias razões pelas quais este é um negócio notável é que a Cerberus é um fundo de investimentos. Até há poucos anos, seria impensável que uma empresa financeira comprasse uma empresa da dimensão da Chrysler. A operação da Cerberus é mais um sinal do crescimento das empresas de investimento que compram, gerem por uns anos, e depois vendem empresas com grandes lucros.

A razão pela qual escrevo sobre a Chrysler é outra: o preço da operação. Primeiro, retenha alguns dados. A Chrysler tem entre 10% e 15% das vendas no mercado americano de automóveis. Em 2004, teve receitas de cerca de $60 mil milhões. No último ano, teve prejuízos de quase $2 mil milhões, devido a quebras nas vendas em parte provocadas pela subida no preço da gasolina, mas entre 2003 e 2005 deu lucro. A Daimler comprou a Chrysler por $36 mil milhões em 1996.

Depois destes dados, tente adivinhar quanto é que a Daimler recebeu pelo negócio? Aposto que se enganou. Foi… menos de zero. De acordo com as contas do “Economist”, a Daimler pagou $670 milhões à Cerberus para esta ficar com a empresa. Não, não me enganei no verbo: é mesmo pagou e não recebeu. Mais concretamente, a Cerberus entra com $7,4 mil milhões, mas destes $6 mil milhões são investidos na Chrysler directamente e deduzem-se os prejuízos nos próximos meses (provavelmente entre 1 e 2 mil milhões). Para além disso, a Daimler empresta à Cerberus $400 milhões.

Como é possível a Chrysler valer menos que zero? O problema da empresa está nos seus compromissos futuros, que são agora assumidos pela Cerberus. Estima-se que, nos próximos anos, a Chrysler vai ter de desembolsar pelo menos $20 mil milhões para cobrir as despesas com os fundos de saúde e pensões dos seus trabalhadores.

A dívida do sistema de saúde deve-se às suas condições demasiado generosas, que foram negociadas com os sindicatos já há muito tempo. Quando os custos de saúde explodiram na última década nos EUA, a empresa arcou quase sozinha com o aumento.

Maior ainda é a dívida do seu plano de reforma de "benefícios definidos". Nestes planos, os trabalhadores recebem uma reforma (ou benefício) garantido até à morte cujo valor é determinado pelo salário que recebiam antes da reforma. Logo, a empresa suporta todo o risco na gestão das contribuições dos trabalhadores se não se conseguirem gerar receitas suficientes para pagar as reformas. Ora, na última década, benefícios demasiado optimistas e a subida na esperança de vida levaram a que milhares de empresas americanas vissem os seus fundos de pensão entrar em défice. Foi isto que aconteceu à Chrysler.

A história da Chrysler põe a nu o contraste entre as empresas privadas e o Estado. A Chrysler prometeu reformas acima das suas possibilidades. Porque uma promessa no sector privado é um contrato que tem de ser assumido, a Chrysler tem de pagar. Por isso, não vale nada. Os Estados pelo mundo fora fizeram as mesmas promessas com o sistema de segurança social. Quando percebem que não há dinheiro para pagar, os Estados simplesmente negam os seus compromissos, alterando as regras da segurança social de forma a não pagarem o que tinham prometido. No sector privado, uma má decisão leva à falência; no Estado, uma má decisão leva a uma lei que resolva o problema à custa dos cidadãos.

Esta diferença está agora a esbater-se. De acordo com alguma imprensa financeira, o plano da Cerberus para fazer dinheiro com a Chrysler tem duas partes. Primeiro, impor aos sindicatos cortes drásticos no sistema de saúde dos trabalhadores. Segundo, e sobretudo, usar o seu considerável poder de ‘lobby’ para convencer o público e políticos americanos que o Estado deve assumir as dívidas dos planos de benefícios definidos. Se isto for verdade, a Cerberus vai ganhar milhões com uma operação simples: transferindo dívidas para o único agente económico que as pode quebrar sem problemas, o Estado.

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