sábado, abril 05, 2008

A crise financeira de 2008

Publicado no Diário Económico a 19/03/2008.

Vive-se hoje, nos Estados Unidos, uma crise financeira grave. Alguns já a comparam com a crise de 1928 que precipitou a Grande Depressão, e embora isso seja um exagero, só o facto de a comparação ser concebível é razão suficiente para apreensão. Já é seguro dizer que esta crise financeira é a mais grave dos últimos 30 anos nos EUA, pior do que o 'crash' bolsista de 1986, ou do que a crise de 1997 causada pelos mercados internacionais.

Na altura que escrevo esta coluna (segunda-feira à noite), o banco Bear Sterns abriu efectivamente falência. Embora não seja muito conhecido em Portugal, não se trata de um banco menor. É uma instituição com 85 anos de história, que há um ano valia qualquer coisa como 16 mil milhões de dólares---para comparação, o BCP e o BPI juntos valem um pouco menos do que isto. Um colosso ainda maior de Wall Street, a corretora Lehman Brothers, está agora em risco, tendo perdido entre quinta e segunda-feira 1/3 do seu valor.

O que é que se passa? Recuando um pouco no tempo, em Julho do ano passado, más notícias sobre o incumprimento em empréstimos imobiliários a devedores de alto risco (‘subprime’) levou a uma queda no preço de activos financeiros (CDOs) que estavam apoiados nesses empréstimos. Porque muitas instituições usavam CDOs como garantia para financiamentos, elas correram a trocá-los por dinheiro, o que levou a que o mercado dos CDOs fechasse sem compradores para tantos vendedores. Porque todos os investidores queriam dinheiro a curto prazo, a diferença entre a taxa nos empréstimos interbancários a um mês versus 1 dia subiu para 0,5% bem acima dos seus habituais 0,05-0,1%. Esta foi a “crise de liquidez” de Agosto de 2007. Os bancos centrais intervieram imprimindo dinheiro para satisfazer a procura de dinheiro.

Na altura, afirmei numa entrevista ao DE: “Penso que se trata de apenas uma crise de liquidez, da qual daqui a um mês ninguém falará. No entanto, os mercados financeiros são hoje tão complexos e interligados que existe o risco de nos precipitarmos para uma crise financeira. Seria irresponsável ignorar esse risco.” Uns dias antes, num artigo no DE escrevi que: “O verdadeiro perigo é que os bancos estejam em piores sarilhos do que descobrimos nos últimos dias despoletando uma crise financeira. […] Este é um mau cenário: as crises financeiras têm efeitos imprevisíveis e perigosos.”

Durante Setembro, os mercados pareceram voltar à normalidade. A diferença entre as taxas nos empréstimos a 1 dia e 1 mês tinha caído em meados de Outubro para 0,25%, e alguns jornais escreviam títulos com o fim da crise. Foi no entanto nessa altura que os problemas se agudizaram. O primeiro sinal de preocupação foi o facto de, ao fim de quase dois meses, a liquidez não estar completamente restabelecida nos mercados. Como referi num debate organizado pelo DE, as crises de liquidez raramente duram mais do que uns dias ou, pior das hipóteses, umas semanas---dois meses era sinal de que algo se estranho se passava.

O que agora sabemos, mas que na altura poucos se aperceberam, é que no rescaldo da crise de liquidez, os agentes no mercado financeiro fizeram descobertas desagradáveis. A crise no mercado dos CDOs e do ‘subprime’ revelou que muitas instituições financeiras com fama de serem conservadoras tinham investido fortemente nestes títulos que se sabia serem muito arriscados. O caso mais caricato foi o de pequenos bancos regionais alemães, enterrados até ao pescoço nestes investimentos que confessavam não compreender, e que tiveram de ser salvos da falência pelo governo alemão. Se até eles tinham investido neste mercado, quem mais o teria feito?

Para além disso, a crise de liquidez mostrou que muitas instituições estavam estranhamente nervosas. Embora não fosse de admirar que os ‘hedge funds’ que arriscam muito em busca de retornos altos e rápidos dependessem de acesso a liquidez no curto prazo, foi estranho ver gigantes como a Bear Sterns, a Lehman Brothers ou o Citigroup a revelarem tantas dificuldades de refinanciamento. O perigo com os “mercados complexos e interligados” e com os “bancos em piores sarilhos” que eu temia em Agosto parecia estar a concretizar-se.

Por isso, a desconfiança começou a instalar-se e a apresentação das contas trimestrais em Dezembro e Janeiro revelou perdas enormes, mostrando que muitos tinham andado a correr riscos que não deviam. Chegamos assim a Fevereiro e Marco, e a um estado de profunda desconfiança nos mercados. Os bancos não confiam nos seus parceiros e por isso não estão dispostos a emprestar dinheiro entre si. O mercado financeiro está paralisado, e a crise instalada. A razão de ser dos mercados financeiros é a movimentação de dinheiro de uns investimentos para outros, de umas instituições para outras, de forma a que o dinheiro acabe nas mãos de quem mais dele precisa e melhor retorno com ele consiga. Quando o dinheiro pára de mover, alguém vai inevitavelmente ao fundo, e neste caso foi esse o destino da Bear Sterns.

Este banco tinha sido um dos maiores investidores no mercado imobiliário “subprime.” Já tinha anunciado grandes perdas, mas o mercado desconfiava que estas fossem ainda maiores. Quando circulou um rumor na semana passada que o banco não estava a conseguir refinanciar-se, houve uma corrida dos seus investidores ao banco. A Bear Sterns quase fechou as portas na sexta-feira, e perante a falência iminente na segunda-feira, os seus donos praticamente deram o banco à J.P. Morgan de borla.

A crise vê-se também em situações insólitas e imprevisíveis. Um dos investimentos mais seguros e estáveis nos EUA (até porque vem com incentivos fiscais) é em obrigações emitidas pelos municípios. No entanto, no mês passado, algumas cidades simplesmente não conseguiram achar nenhum comprador para os seus títulos, mesmo com um enorme saldo nos preços! Outro tipo de investimento relativamente seguro é em contas de cartões de crédito e em empréstimos a estudantes. Ambos têm uma taxa histórica de incumprimento relativamente baixa e muito estável. Nas últimas semanas, estes títulos têm-se transaccionado a um preço de desconto nunca visto.

Os próximos dias vão ser de grande incerteza. A desconfiança nos mercados está a atingir níveis de histerismo. Para além da preocupação com o que vai acontecer à Lehman Brothers nos próximos dias, nas próximas semanas espera-se com ansiedade para ver qual é a reacção dos investidores estrangeiros. Estes têm sido nos últimos meses dos principais agentes a investir liquidez no mercado financeiro americano, para não falar do seu papel fulcral nos últimos anos em financiar o défice comercial externo dos EUA. As injecções de liquidez da Reserva Federal e a previsível baixa nas taxas de juro, levam a que se espere uma desvalorização do dólar que traz prejuízos a estes investidores. Se eles decidirem retirar o seu dinheiro, pode ser o caos.

A Reserva Federal por sua vez está a atingir o limite das suas capacidades de intervenção. Já há pouco espaço de manobra para cortar mais as taxas de juro de referência (que afinal não podem ser menos que zero), e há um limite para as intervenções directas no mercado como a deste fim-de-semana. O Fed assumiu $30 mil milhões de dívidas da Bear Sterns investidas no mercado imobiliário, comprometendo-se a pagar aos credores no caso dos títulos entrarem em incumprimento. Embora o Fed não tenha chegado ao limite de nacionalizar o banco, como o Banco de Inglaterra teve de fazer com o Northern Rock, em termos financeiros o que fez não é muito diferente. Há um limite para as dívidas financeiras que o banco central pode assumir.

Na economia real, já se sente a dificuldade em conseguir novos empréstimos à habitação, e os municípios que não conseguiram financiamento tiveram de adiar investimentos públicos. A probabilidade de recessão, no último mês apenas subiu de 30-50% para algo como 50-70%. Ainda não estamos numa crise económica, mas há muitas razões para estar preocupado. Repetindo o que escrevi há 7 meses, as crises financeiras têm efeitos imprevisíveis e perigosos.

Sem comentários: