sexta-feira, dezembro 29, 2006

Desigualdade: pessoas ou países

Publicado no Diário Económico a 12/12/2006.

“O mundo nunca esteva tão desigual”. “Há cada vez mais pobres no mundo”. “Os ricos estão mais ricos, e os pobres mais pobres”. Estas afirmações são comuns por parte do Banco Mundial, de Bono dos U2, do Bloco de Esquerda, e muitos outros B’s. Mas será que estão certas?

O economista Xavier Sala-i-Martin decidiu investigar. A tarefa não é fácil. Primeiro, é preciso decidir como medir a riqueza: usando o consumo ou o rendimento? Sala-i-Martin prefere o rendimento argumentando que se as pessoas consomem menos com o mesmo rendimento, porque decidiram poupar mais ou porque recebem menos do governo, não se deve concluir que elas estão mais pobres. Segundo, é preciso converter diferentes moedas. Sala-i-Martin usa taxas de câmbio que ajustem para a paridade de compra: se um cabaz representativo de bens custa 1 euro em Portugal e 10 renminbi na China, então a taxa de câmbio é 10. Por fim, são precisos dados sobre o rendimento médio em cada país e sobre a sua distribuição dentro de cada países. Este último é o mais difícil porque não existem medidas da distribuição do rendimento para todos os países em muitos anos e as que existem envolvem grandes margens de erro. Mesmo assim, usando os dados que temos, quer do PIB quer de questionários às pessoas sobre os seus rendimentos, Sala-i-Martin (heroicamente) constrói estimativas dos dados que faltam.

Feito este trabalho árduo, podemos ver como evoluiu a desigualdade. Comparando o crescimento nos diferentes países, descobrimos que os mais ricos têm crescido mais rapidamente do que os mais pobres. Por exemplo, enquanto que os EUA cresceram a cerca de 2,5% entre 1960 e 2000, Angola cresceu a -1,6%. Por sua vez, ocorreu também um aumento no desvio-padrão do nível do PIB per capita. Enquanto que em 1960, a Franca era 1,8 vezes mais rica do que a Venezuela, em 2000 o rácio era 3,3. Parece que os B’s estão certos.

No entanto, há um problema com estas comparações – tratam os países todos como iguais. Só que a Alemanha tem 82 milhões de habitantes enquanto que o Luxemburgo tem meio milhão. E se pesarmos cada país pela sua população? Nesse caso, a conclusão é a oposta: nos últimos 30 anos, os mais pobres enriqueceram mais depressa do que os mais ricos e a desigualdade diminuiu. Os B’s afinal estão errados.

Como é que isto é possível? Na China, na Índia e na Indonésia mora quase metade da população humana. A China cresce a ritmo acelerado há 30 anos, a Índia seguiu-lhe a passada nos anos 90, e a Indonésia, apesar da crise de 1997, duplicou o seu PIB per capita entre 1979 e 2000. Em África, há muitos países, e quase nenhum deles experimentou qualquer progresso ou crescimento económico desde 1970. Mas há duas vezes mais chineses do que africanos abaixo do Saara.

Esta última comparação continua a usar os países como unidade de analise. Embora dê mais peso aos países mais numerosos, ignora a desigualdade entre pessoas no mesmo país. Para dar um exemplo do que isto implica, imagine que se descobre petróleo num país pobre, mas as receitas vão todas só para uma pessoa. Neste caso, os números acima dizem que a desigualdade baixou (um país pobre enriqueceu) embora a desigualdade dentro do país tenha aumentado.

A inovação de Sala-i-Martin é olhar para a pessoa como unidade de análise. Neste caso, e usando qualquer uma das possíveis medidas de desigualdade (desvio-padrão, coeficientes de Gini, etc.) os dados são claros: a desigualdade diminuiu. Contando como pobres as pessoas que ganham menos de $1 por dia (como faz o Banco Mundial), o número de pobres baixou de 15% para 6%. Desde 1970, a população humana aumentou em cerca de 2.000 milhões, quase todos residentes em países pobres, mas ao mesmo tempo o número de pobres caiu de 534 milhões para 322 milhões.

Qual é a unidade de análise certa? A resposta necessariamente envolve adoptar um sistema de valores. Os dados acima mostram que se o “valor” de uma pessoa é independente da sua nacionalidade, então nos últimos 30 anos houve uma espectacular descida da desigualdade.

Suspeito que os B’s se exprimem mal. O que os choca quando olham para o mundo não é a desigualdade. É antes o continente africano. Em 1975, 15% dos pobres no mundo viviam em África; hoje são 68%. É esta a grande tragédia dos nossos tempos.

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