sexta-feira, dezembro 29, 2006

Realidades paralelas

Publicado no Diário Económico a 28/11/2006.

No discurso comum, os mercados de capitais surgem quase sempre envoltos em mistério. Quando se misturam finanças, nacionalismo e política, então as discussões entram numa realidade paralela. A diferença entre as percepções no mundo dos capitais e nummundo mais familiar, as carnes, pode ser abissal. Vejamos:

Mundo das carnes: Você costuma comprar carne no talho do sr. Silva. No entanto, corre um rumor de que a carne está estragada. Quando lá foi a semana passada, você reparou nuns bifes azuis escondidos a um canto. Receoso, decide experimentar ir ao talho do sr. Pinto. Veredicto: você é responsável.

Mundo dos capitais: Estamos em 1997 e você tem as poupanças investidas em aplicações financeiras na Coreia do Sul. Corre um rumor de que o sistema financeiro coreano está a beira da falência. Você lê a imprensa económica que revela existirem, escondido pela contabilidade dos bancos, milhões em crédito mal-parado. Receoso, você decide vender as aplicações coreanas e trazer o dinheiro para Portugal. Veredicto: especulador maldito!

Mundo das carnes: O sr. Silva trabalha dia e noite, é sempre simpático, e você tem-lhe afeição. Custa-lhe vê-lo em dificuldades até porque os problemas devem-se à incapacidade que ele tem em ter mão nos trabalhadores. Mas, na última vez que lá foi, o bife que trouxe estava estragado e foi directamente para o lixo. Decide não ir lá mais. Veredicto: a saúde da sua família está primeiro.

Mundo dos capitais: Estamos em 2002 e a Argentina está em crise orçamental. Você tem muita afeição pelo rancho na Patagónia herdado de um tio emigrante, e espera retirar-se para lá depois da reforma. Embora confie no ministro das Finanças Cavallo, você percebe que ele não consegue parar a espiral incontrolável de despesa dos governadores regionais. As finanças públicas estão em colapso, e alguns populares insatisfeitos já ocuparam parte do seu terreno. Você decide vender enquanto ainda lhe dão algum pelo rancho, antes que perca tudo. Veredicto: explorador insensível!

Mundo das carnes: Agastado, o sr. Silva anuncia que o seu filho, Afonso, vai passar a estar à frente do talho. O Afonso, quando era rapaz, vangloriava-se de nunca lavar as mãos e de ser muito manhoso nas suas tácticas para enganar os clientes nos trocos. Hoje, diz-se um homem mudado, mas você desconfia. Por isso, decide esperar uns tempos sem voltar ao talho até perceber se o Afonso afinal endireitou.Como os clientes não voltam, o sr. Silva começa a duvidar da decisão de nomear o Afonso. Veredicto: você é prevenido e sensato.

Mundo dos capitais: Em 2002, Lula da Silva concorre a presidente do Brasil e as sondagens dão-lhe a vitória quase garantida. No passado, Lula defendeu a expropriação dos capitais e o fim da política monetária estável seguida pelo banco central. Você decide por uns tempos manter as suas poupanças em Portugal em vez do Brasil. A fuga de capitais leva a que Lula caia nas sondagens. Veredicto: ataque à soberania nacional – estão a condicionar as escolhas democráticas dos brasileiros!

Mundo das carnes: Num prédio com idosos, decide-se incumbir o sr. Velez de comprar a carne todas as semanas. Porque controla centenas de euros, quando o Velez responde às queixas dos idosos quanto à qualidade da carne, mudando do talho Silva para o Pinto, é o fim do talho Silva. Veredicto: o Velez zelou pelo interesse dos idosos.

Mundo dos capitais: Porque você não tem tempo para acompanhar o mercado de capitais, põe os seus investimentos a cargo de um fundo. O gestor do fundo, responsável por conseguir um bom retorno para os seus milhares de clientes, reage a más notícias na Tailândia em 1997 retirando os milhões que lá tinha investido. A Tailândia mergulha numa crise. Veredicto: capitalista cruel!

O ponto de vista nos veredictos sobre os mercados de capitais é compreensível. As crises financeiras trazem crises económicas com efeitos devastadores e atiram muitos para a miséria. Mas, culpar os misteriosos “especuladores” e o tenebroso “mercado de capitais” esconde os problemas em vez de os enfrentar. Frequentemente, os primeiros a correr atrás destes moinhos de vento são os verdadeiros responsáveis pelas dificuldades do país. Não se deve confundir o sintoma com a doença.

1 comentário:

Carlos Manta Oliveira disse...

Olá Ricardo!

Estás a deambular pelo campo da responsabilidade, que é muito complexo, especialmente para nós portugueses.

Com o crescimento de qualquer poder, e o económico não é excepção, cresce a responsabilidade e a consequência das mesmas acções.

Em Portugal atira-mos com facilidade o embrulho do chocolate fora pela janela do carro, mas estamos à espera que todas as indústrias construam estações de tratamento de resíduos e não poluam rios...

O impacto das acções e decisões precisa de ser uma das variáveis a ter em conta, junto com o benefício económico.

;-)