sexta-feira, dezembro 29, 2006

Kofi Annan e a ONU

Publicado no Diário Económico a 26/12/2006.

A 31 de Dezembro, acaba o mandato de Kofi Annan após 10 anos à frente da ONU. Tinha alguma simpatia por Annan. Quando o ouvi em pessoa, em 2004, contou a história da sua chegada aos EUA para tirar o curso em Minnesota. Inicialmente, gozou com os locais por usarem uns ridículos e enormes chapéus de pele. Quando chegou o Inverno e a temperatura caiu para os habituais -10 graus, Annan foi o primeiro a correr a uma loja para comprar o maior chapéu que havia. Com esta experiência, disse que aprendeu a sua maior lição política: nunca ignores a sabedoria dos locais.

A minha impressão de Annan mudou depois de um jantar com Paul Volcker há uns meses. Volcker, um homem sério, depois de vários desafios na função pública, incluindo a liderança do Fed entre 1979 e 1987, aceitou em 2004 uma nova missão: investigar o comportamento da ONU no programa “petróleo-por-comida”. Criado em 1994, após o fim da primeira guerra no Iraque, este programa vendia licenças de exportação de petróleo iraquiano a companhias internacionais e usava as receitas para comprar alimentos para os iraquianos e para compensar o Kuwait. A ONU, num dos raros casos em que passou das palavras à acção, supervisionou o processo até ao fim, em 2003.

O programa foi um falhanço tremendo. Logo no início, o contrato de supervisão financeira foi entregue ao BNP Paribas. O Paribas não só era um dos concorrentes mais caros (e recebeu $700 milhões em comissões), como tinha como maior accionista privado um iraquiano. Há sérios indícios que o banco efectuou vários pagamentos sem recibos de alimentos em troca.

Para além disso, Saddam Hussein usou o programa para rearmar o Iraque. Para receber um dos contratos exclusivos, as empresas internacionais tinham de lhe pagar uma “comissão,“ por vezes justificada com recibos para “serviços de transporte” inexistentes. Estima-se que Saddam recebeu mais de $10 mil milhões em subornos, tendo inclusive usado algum deste dinheiro para pagar às famílias de bombistas suicidas na Palestina. A supervisão da ONU foi, por vezes inexistente, outras vezes incompetente, e talvez mesmo conivente com a corrupção. O director da ONU, Benon Sevan, recebeu alguns pagamentos suspeitos que estão sob investigação.

Qual foi o papel de Kofi Annan? O seu filho, Kojo Annan, foi empregue em 1995 pela empresa Cotecna, onde trabalhava um amigo próximo do pai. Esta empresa, especializada em inspecções internacionais, em 1998 encontrava-se em apuros que incluíam um processo-crime na Suíça à conta de subornos a Benazir Bhutto e outros no Paquistão. A Cotecna decide concorrer ao contrato principal do programa “petróleo-por-comida” e, em Setembro, Kojo encontra-se com o seu pai e arranja uma reunião entre Kofi e o seu patrão. A Cotecna ganha o concurso em Dezembro. Apesar de ter feito a oferta mais barata, revê os seus custos em alta apenas uns meses depois, de uma forma que os auditores da ONU agora consideram danosa.

Em Janeiro, um jornal britânico revela as ligações de Kojo à companhia. A Cotecna e Kojo afirmam que a sua relação terminou em Outubro de 1998, para evitar conflitos de interesse no contrato com a ONU. Volcker, depois de trabalho de detective, descobre que Kojo recebeu da companhia $2.500 por mês entre Janeiro de 1999 e 2004 ao abrigo de um acordo de “não-competição” e mais $484.492 por consultadoria a várias empresas-fantasma do mesmo grupo.

Kofi Annan reage à notícia negando contactos com a Cotecna (depois confirmados) e falando com o filho (mais tarde nega esta conversa para depois admiti-la). Kofi ordena uma investigação dentro da ONU que dura menos de um dia e conclui que nada está errado. Kofi não investiga mais e a Cotecna mantém o contrato até 2004. Durante as investigações de Volcker, o chefe de gabinete de Annan destrói vários documentos.

O relatório público final de Volcker é muito crítico quanto à falta de transparência e o ambiente de corrupção na ONU (e em privado, Volcker diz muito mais).

A ultima década foi marcada por muitos falhanços da ONU na política internacional. Descobrimos agora também que a ONU tem podres por dentro, que não poupam o seu carismático líder. Kofi Annan não vai deixar saudades. Esperemos que o seu sucessor consiga fazer melhor.

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