domingo, dezembro 09, 2007

Crise de liquidez

Publicado no Diário Económico a 11/9/2007.

Já escrevi no DE sobre a crise financeira da perspectiva da macroeconomia. Vou agora tentar explicar o que se passa da perspectiva financeira. Infelizmente, em finança é difícil evitar o jargão abundante, mas peço a paciência do leitor enquanto tento o meu melhor.

Comecemos por definir “crise de liquidez”. A tarefa clássica dos bancos é atrair depósitos e fazer empréstimos, que diferem numa característica fundamental, a duração (ou maturidade). Num depósito à ordem, eu empresto ao banco a curto prazo, podendo levantar o dinheiro a qualquer momento, mas quando o banco me empresta dinheiro para eu comprar casa, só vai receber a 30 anos.

O banco consegue transformar curto em longo pazo aproveitando-se de duas regularidades estatísticas. Primeiro, por cada levantamento costuma haver um novo depósito. Mesmo que eu deposite 100 euros hoje e os levante amanhã para pagar uns sapatos, o dono da sapataria vai depositar esses 100 euros amanhã no banco, por sua vez pagar ao fornecedor que os volta a depositar, e por aí adiante. Por isso, embora cada depósito individual seja a curto prazo, a sua sucessão permite um financiamento regular. Segundo, só uma percentagem pequena dos depósitos é levantada cada dia, pelo que basta ao banco guardar em caixa essa percentagem para satisfazer as suas obrigações. O restante pode ser emprestado.

O risco é que estas regularidades falhem. Imagine que circula um rumor que o banco vai falir. Então, eu vou correr para o balcão para tentar ser o primeiro a levantar o meu depósito enquanto há dinheiro em caixa, e guardo-o fora do sistema bancário. A primeira regularidade falha, pois os euros que saem não voltam a entrar nos bancos. Porque todos pensam o mesmo e correm para o banco para fechar as suas contas, a segunda regularidade também falha. Ocorre uma crise de liquidez e, sem nenhuma intervenção, o banco vai a falência. Os bancos centrais tentam evitar estas crises, emprestando dinheiro aos bancos a curto prazo (”injectando liquidez”) na esperança que entretanto as pessoas se acalmem.

Viremo-nos agora para a crise recente nos mercados financeiros. Nos últimos 20 anos, tornou-se comum reunir e vender carteiras com muitas hipotecas, conferindo direito ao seu fluxo de pagamentos (MBS para ‘mortgage-backed securities’). Tornou-se também comum comprar várias MBS ou outros activos como obrigações e créditos a empresas, rearranjar os seus componentes em diferentes pacotes, e revendê-los como novos títulos (CDO ou ‘collateralized debt obligations’). O risco destes pacotes era avaliado por ‘rating agencies’ (parece que mal) e transaccionados num mercado normalmente muito activo.

Durante Julho, descobriu-se que algumas hipotecas de alto risco estavam a dar prejuízo, pelo que as suas MBS caíram em valor. Algumas empresas neste (pequeno) mercado faliram, mas havia muitos mais investidores com CDO suportados pelas MBS. Muitos, sobretudo ‘hedge funds’, investiam com dinheiro emprestado dando CDO como garantia. Porque a garantia desceu de valor, eles tentaram vender os CDO, mas porque toda a gente os queria vender e quase ninguém os queria comprar, o mercado dos CDO praticamente fechou.

Por sua vez, dentro dos bancos existem fundos (SIV para ‘structured investment vehicles’) que vendem CDO a curto prazo e investem a longo prazo. Quando o mercado de CDO fechou, correram para a casa-mãe para se refinanciarem. Foi como se milhares de depositantes aparecessem à porta, gerando a crise de liquidez e a intervenção dos bancos centrais que saltou para as notícias. Os principais SIV com problemas eram alemães, pelo que a intervenção do BCE foi enorme, mas é nos EUA que estão muitos dos investidores apoiados em CDO.

O desafio para a Reserva Federal é por isso enorme. Por um lado, a macroeconomia sugere uma manutenção das taxas de juro. Por outro lado, os mercados financeiros esperam que as taxas caiam 0,5% para restabelecer a calma e reactivar o mercado dos CDO. Manter as taxas pode levar a falências em catadupa e causar uma crise financeira; descê-las deve aquecer a economia e gerar inflação.

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