domingo, dezembro 09, 2007

Explicando a crise do ‘subprime’

Publicado no Diário Económico a 16/8/2007.

Não têm faltado nos últimos dias comentários à pressão sobre a crise no sector de crédito ‘subprime’ nos EUA. O objectivo deste artigo é explicar com mais profundidade o que está por trás da crise. É uma história fascinante em cinco capítulos.

Capítulo I. A crise das S&L. Até aos anos 80, o sector bancário nos EUA era muito regulado e fragmentado. A lei proibia um banco de ter agências em mais do que um estado e havia fortes restrições aos juros pagos nos depósitos à ordem. Isto permitia a sobrevivência de uns pequenos bancos, os “Savings and Loans” (S&L), de carácter local e sobretudo rural, com depósitos das pessoas na comunidade e empréstimos para habitação.

No início dos anos 80, dois choques puseram as S&L à beira da falência. Primeiro, porque os seus empréstimos eram a longo prazo e a taxas nominais fixas (por exemplo, 5% a 30 anos), quando a inflação inesperadamente subiu acima dos 10%, os prejuízos acumularam-se. Segundo, com a desregulamentação do sector bancário, as S&L deixaram de conseguir atrair depósitos, pois não tinham a rede de balcões e serviços dos grandes bancos, e não conseguiam competir com os juros que se pagavam nos depósitos. Entraram na bancarrota.

Capítulo II. A titularização. Para evitar os distúrbios que estas falências trariam, sobretudo nos meios rurais, o departamento do Tesouro interveio fechando as S&L e assumindo os seus créditos. Porque o governo não tem vocação para gerir empréstimos, queria vender estes activos no sistema financeiro, mas era tal o volume ($400 mil milhões) que não se achava comprador para tudo.

A solução foi ‘titularizar’ estes activos. Já existia um mercado em que os bancos combinavam empréstimos em pacotes e os vendiam e compravam a qualquer hora, como qualquer outro título. Por exemplo, imagine que pede um empréstimo a habitação no BCP. Se o BCP já tem muitos empréstimos do mesmo tipo, e quer diversificar este risco, vai a este mercado onde o vende ao BPI. O BCP continua a assumir a gestão do empréstimo e a cobrança da dívida, mas as receitas passam a ir para o BPI, assim como o risco de incumprimento. Ajudado pelo impulso inicial dos activos S&L, este mercado expandiu e tornou-se num sucesso, permitindo aos bancos diversificar as suas carteiras de empréstimos.

Capítulo III. O mercado ‘subprime’. Esta possibilidade de diversificação do risco permitiu uma expansão do crédito nos anos 90. Tornou-se possível conceder empréstimos a grupos de maior risco. Imagine, por exemplo, um casal jovem e promissor que anda entre empregos e quer comprar a primeira casa, ou uma família de meia-idade que faz uma hipoteca para financiar a montagem de um negócio. Os contratos de empréstimo eram frequentemente do tipo 2/28, com uma taxa baixa nos primeiros 2 anos em que era necessária a liquidez, e uma taxa bem maior nos 28 seguinte para compensar o risco.
Estes empréstimos não são tresloucados, mas são com certeza arriscados, pois os jovens podem nunca conseguir emprego, e a empresa pode ir à falência. Por isso, as agências de ‘rating’ deram-lhes no mercado uma classificação abaixo de A-prime, daí o nome ‘subprime’. O mercado cresceu e hoje inclui cerca de 10% dos empréstimos para a habitação nos EUA.

Capítulo IV. A crise. Nos últimos dois meses, chegaram más notícias a este mercado. Embora já se esperasse que as taxas de incumprimento fossem altas (5% ou 6%), elas acabaram por ser maiores do que se esperava (10% ou 15%). O valor dos títulos caiu, e 2 fundos gigantes de investimento imobiliários da Bear Sterns praticamente faliram no final de Junho.
Parcialmente em segredo (as carteiras de títulos são confidenciais), muitas instituições financeiras tentaram vender os seus títulos ‘subprime’ para limitar as perdas levando a uma queda acentuada no seu valor desde meados de Julho. Os bancos tiveram de aumentar as suas reservas a curto prazo para fazer face ao novo risco, indo ao mercado no qual os bancos centrais fixam a taxa de juro. Isto levou a um rápido aumento da procura no mercado das reservas nos últimos dias, pondo pressão numa subida na taxa de juro. Para manter a taxa fixa no valor de referência, os bancos centrais tiveram de imprimir dinheiro para aumentar a oferta, ou seja “injectar dinheiro”. Porque estas operações são públicas, os investidores receberam a notícia de que os bancos estavam mais expostos ao mercado ‘subprime’ do que se pensava. Logo, o valor das acções dos bancos caiu a pique.

Capítulo V. E agora? O efeito na economia real dos problemas nos empréstimos ‘subprime’ deve ser pequeno. Estamos a falar só de 1% dos devedores no mercado da habitação americano em incumprimento. Já o efeito nas acções dos bancos é obviamente negativo, porque fizeram um mau negócio no ‘subprime’, mas não há mal nenhum nos bancos perderem dinheiro de vez em quando como qualquer outra empresa. O verdadeiro perigo é que os bancos estejam em piores sarilhos do que descobrimos nos últimos dias despoletando uma crise financeira. Mas, os bancos centrais estão vigilantes, pelo que este ainda é um cenário improvável.

E as taxas de juro? Existem dois cenários. Primeiro, se estamos perante apenas uma crise de liquidez temporária porque todos os bancos quiseram aumentar as reservas ao mesmo tempo, então as previsões de subida até ao fim do ano mantêm-se. É esta a previsão actual no mercado Euribor, e a minha também, e é consistente com a aceleração da economia europeia em 2008. Segundo, se entretanto surgirem nas próximas semanas indícios de uma crise financeira, então talvez o BCE altere os planos e mantenha os juros baixos. Este é um mau cenário: as crises financeiras têm efeitos imprevisíveis e perigosos. Para além disso, porque tendem a subir os prémios de risco cobrados por uma banca em apuros, mesmo com uma taxa de referência do BCE baixa, a taxa ao cliente pode subir.

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