sábado, abril 05, 2008

A era de Friedman

Publicado no Diário Económico a 26/02/2008.

Como em todas as épocas da história do mundo, não faltam hoje as queixas sobre o estado do planeta, acompanhadas por suspiros de saudade pelo passado. É por isso importante lembrar os factos: os 25 anos entre 1980 e 2005 são uma das épocas mais prósperas na história da humanidade. Os dados são arrebatadores:

I) o rendimento per capita no mundo cresceu a uma média de 2% por ano;

II) a desigualdade diminuiu de forma extraordinária, sobretudo porque a Europa do Leste e a Ásia (onde moram 2/3 da humanidade) cresceram a um ritmo nunca visto;

III) a fracção da população que vive com menos de $1 por dia caiu de 35% para 19%, pelo que a pobreza extrema é hoje um problema quase só africano e não mundial;

IV) a mortalidade infantil caiu em todas as regiões, de em média 64 mortes por 1000 nascimentos, para apenas 38;

V) a esperança de vida aumentou em todos os continentes excepto África, e mesmo na Europa em perto de 5 anos;

VI) o número de anos de escolaridade aumentou em média de 4,4 para 6 anos entre 1980 e 1999;

VII) há hoje mais democracias do que em 1980, em grande parte devido à libertação da Europa de leste.

Num artigo recente, o professor Andrei Shleifer relembrou estes factos e avançou a sua explicação: a influência de Milton Friedman. Para quem estudou economia, este nome não é de certeza desconhecido. São poucos os economistas que não colocam Friedman entre os três mais importantes economistas da segunda metade do século XX. (Já agora, para mim, os outros dois são Paul Samuelson e Kenneth Arrow.) No estudo das escolhas quando há risco e incerteza, do consumo das famílias, da política monetária, da metodologia, da história económica, e muito muito mais, Friedman está em todo o lado na ciência económica.

Menos conhecida mas igualmente importante foi a participação de Friedman no debate político. Ele foi um dos grandes líderes do movimento liberal, defendendo os benefícios dos mercados e das escolhas livres em dezenas de discursos, livros e artigos de jornal. Ele foi um dos fundadores da “Mont Pélérin Society”, um ponto de encontro importante para liberais do mundo inteiro, e foi em parte por sua intervenção que Friedrich Hayek encontrou refúgio na Universidade de Chicago apesar do seu currículo académico limitado na altura. Nos EUA, ele foi um dos grandes responsáveis pela eliminação do serviço militar obrigatório, e pela introdução (ainda hoje limitada) da escolha no ensino público.

No campo da política económica, três dos principais líderes dos últimos 25 anos confessaram inspiração nas lições de Friedman: Margaret Thatcher no Reino unido, Ronald Reagan nos EUA, e Deng Xiao Ping na China. Friedman defendia que o Estado devia deixar os mercados funcionarem com pouca regulação, manter a inflação baixa, reduzir os impostos, e deixar de impedir o comércio internacional. Shleifer nota que, a juntar aos factos acima, outros factos desta época são:

VIII) a regulação (medida pela facilidade em abrir uma empresa) baixou muito;

IX) a inflação média caiu de 14% para 4%;

X) a taxa média do escalão mais alto do IRS no mundo caiu de 65% para 37%;

XI) a tarifa média sobre importações caiu de 43% para 14%.

Para Shleifer, o progresso entre 1980 e 2005 tem uma causa: a abertura e liberalização dos mercados. Para honrar o líder intelectual destas mudanças, Shleifer propõe chamar a esta época: a era de Friedman.

A posição de Shleifer tem algumas falhas. A mais óbvia é a história recente da China e da Índia. Estes dois países são responsáveis por muito do progresso nesta época, até porque neles mora quase metade da população humana. Embora eles tenham adoptado muitas medidas economicamente liberais, também não deixaram de intervir na economia de mil-e-uma maneiras.

No entanto, Shleifer merece o mérito de avançar com uma explicação concreta e razoável para explicar o progresso brutal desde 1980. Talvez esta era não seja apenas de Friedman, mas é pelo menos em parte sua. Já é muito para um pequeno homem de 1,50m que morreu há pouco mais de um ano.

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